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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Por que é quase certeza que Deus não existe


Em meio à falta de novos assuntos no mundo científico e a falta de pérolas crentais, vamos descontrair para um assunto igualmente interessante. Li este texto no Facebook e decidi compartilhar aqui.

A América, fundada em meio ao secularismo como farol do iluminismo do século 18, está se tornando vítima da política religiosa — uma circunstância que teria chocado seus fundadores. A tendência política hoje ascendente atribui mais valor a células embrionárias que a pessoas adultas. Ela se preocupa obsessivamente com o casamento entre homossexuais, em detrimento de questões genuinamente importantes que de fato fazem uma diferença para o mundo. Conquista apoio eleitoral crucial de um eleitorado religioso cujo domínio da realidade é tão tênue que seus integrantes esperam ser “carregados em êxtase” ao paraíso, deixando suas roupas tão vazias quanto suas mentes.

Seus expoentes mais radicais chegam a ansiar por uma guerra mundial, que identificam como o armagedon que deve ser o presságio do retorno de Cristo à Terra. Em seu novo livro curto “Letter to a Christian Nation” (carta a uma nação cristã), Sam Harris, como de costume, acerta o alvo em cheio:

Não constitui exagero, portanto, dizer que, se a cidade de Nova York fosse repentinamente substituída por uma bola de fogo, uma porcentagem significativa da população americana enxergaria um aspecto positivo na nuvem atômica subsequente, já que esta sugeriria a essas pessoas que estaria por acontecer a melhor coisa possível: o retorno de Cristo. Imaginem-se as consequências se uma parcela significativa do governo americano acreditasse de fato que o mundo está prestes a acabar e que seu fim será glorioso. O fato de que quase metade da população americana aparentemente acredita nisso, puramente com base em dogmas religiosos, deve ser visto como emergência moral e intelectual.



Meus colegas cientistas têm razões adicionais para declarar estado de emergência. Os ataques ignorantes e absolutistas às pesquisas com células-tronco representam apenas a ponta de um iceberg. O que temos aqui não é nada menos que um ataque global à racionalidade e aos valores iluministas que inspiraram a fundação desta primeira e maior das repúblicas seculares. O ensino de ciências — logo, todo o futuro da ciência neste país — se encontra sob ameaça. Temporariamente derrotada num tribunal da Pensilvânia, a “inanidade estarrecedora” (na frase imortal do juiz John Jones) do design inteligente continuamente ressurge em incêndios florestais locais [alusão ao juiz que proibiu em 2005 uma escola de ensinar o design inteligente porque isto seria inconstitucional].

Apagar esses incêndios é uma responsabilidade que consome muito tempo, mas é importante, e os cientistas estão finalmente sendo arrancados de sua complacência. Durante anos eles trabalharam tranquilamente com sua ciência, lamentavelmente subestimando os criacionistas que, sendo tampouco competentes ou interessados na ciência, se ocuparam com o trabalho político sério de subverter os conselhos locais de ensino. Os cientistas, e os intelectuais de modo geral, agora estão despertando para a ameaça representada pelo Talibã americano.

Os cientistas se dividem entre duas linhas de pensamento quanto à melhor tática com a qual fazer frente à ameaça. A escola de “conciliação” de Neville Chamberlain focaliza a batalha pela evolução. Consequentemente, seus integrantes identificam o fundamentalismo como sendo o inimigo e se esforçam ao máximo para conciliar com a religião “moderada” ou “sensata” (uma tarefa que não é difícil, na medida em que bispos e teólogos rejeitam os fundamentalistas tanto quanto o fazem os cientistas).

Já os cientistas da escola Winston Churchill veem a luta pela evolução como apenas uma batalha em uma guerra mais ampla: uma guerra que se aproxima entre o sobrenaturalismo e a racionalidade. Para eles, bispos e teólogos se enquadram no campo sobrenatural, lado a lado com os criacionistas, e não se deve procurar conciliar com eles.

Um artigo recente de Cornelia Dean no “New York Times” cita o astrônomo Owen Gingerich como tendo dito que, ao advogar simultaneamente a evolução e o ateísmo, “o dr. Dawkins sozinho provavelmente atrai mais convertidos para o design inteligente do que qualquer dos mais destacados teóricos do design inteligente”. Não é a primeira, nem a segunda, nem mesmo a terceira vez que se apresenta esse argumento insuperavelmente destituído de bom senso (e mais de uma réplica a ele já citou, com muita conveniência, Uncle Remus: “Por favor, Irmão Raposa, não me atire naquela horrível moita espinhosa”).

Os seguidores de Chamberalain costumam citar o “NOMA” (“nonoverlapping magisteria”), do falecido Stephen Jay Gould. Gould afirmava que a ciência e a religião verdadeira nunca entram em conflito, porque existem em dimensões de discurso totalmente separadas:

Para afirmá-lo em nome de todos meus colegas e pela décima-milionésima vez (desde sessões de bate-papo universitário até tratados eruditos): a ciência simplesmente não pode (por seus métodos legítimos) adjudicar a questão da possível superintendência de Deus sobre a natureza. Nós nem a afirmamos, nem a negamos; simplesmente, como cientistas, não podemos comentá-la.

Isso soa tremendo, até que você para para refletir sobre a ideia por um instante. Então você se dá conta de que a presença de uma divindade criativa no universo é claramente uma hipótese científica. De fato, seria difícil imaginar uma hipótese mais momentosa em toda a ciência. Um universo com um deus seria um universo de tipo totalmente diferente de um universo sem deus, e a diferença seria científica. Deus poderia acabar com a dúvida a seu favor a qualquer momento, encenando uma demonstração espetacular de suas forças, capaz de satisfazer os padrões exigentes da ciência.

Mesmo a infame Fundação Templeton reconheceu que Deus é uma hipótese científica. Apesar de esforços bem financiados, ainda não apareceu nenhuma evidência que comprove a existência de Deus. Para enxergar a hipocrisia insincera das pessoas religiosas que se dizem adeptas do NOMA, imaginemos que arqueólogos forenses, devido a algum conjunto improvável de circunstâncias, descobrissem evidências em DNA que demonstrassem que Jesus nasceu de mãe virgem e não teve pai. Se os entusiastas do NOMA fossem sinceros, eles deveriam desconsiderar imediatamente o DNA encontrado pelos arqueólogos: “É irrelevante. As evidências científicas não têm valor algum para questões teológicas. É o magistério errado.”

Alguém imagina seriamente que eles diriam alguma coisa remotamente semelhante a isso? Pode apostar o que você quiser que não apenas os fundamentalistas, mas também todos os bispos e todos os professores de teologia do país alardeariam as evidências arqueológicas até os céus.

Ou Jesus teve pai, ou não teve. A questão é científica, e evidências científicas seriam usadas para resolvê-la, se as houvesse. O mesmo se aplica a qualquer milagre — e a criação proposital e intencional do universo só poderia ter sido a mãe e o pai de todos os milagres. Ou ela aconteceu, ou não aconteceu. É um fato, de uma maneira ou de outra, e, em nosso estado de incerteza, podemos atribuir a ele uma probabilidade — uma estimativa que pode se modificar à medida que forem chegando mais informações. A melhor estimativa que a humanidade pode fazer quanto à probabilidade da criação divina se reduziu drasticamente em 1859, quando foi publicado “A Origem das Espécies”, e vem caindo constantemente nas décadas subsequentes, à medida que a evolução foi se consolidando, de teoria plausível no século 19 para fato estabelecido, hoje.

A tática Chamberlain de aconchegar-se com a religião “sensata”, de modo a apresentar uma frente unida contra os criacionistas (os proponentes do design inteligente), é ótima se sua preocupação central é a batalha pela evolução. Essa é uma preocupação central válida, e eu saúdo aqueles que a defendem, como é o caso de Eugenie Scott em “Evolution versus Creationism” (Evolução versus criacionismo). Mas, se você se debruça sobre a questão científica estupenda de se o universo foi ou não criado por uma inteligência sobrenatural, as linhas divisórias seguem um traçado totalmente distinto. Sobre essa questão mais ampla, os fundamentalistas se unem à religião “moderada” em um dos campos, e eu me vejo no outro.

É claro que tudo isso pressupõe que o Deus do qual estamos falando seja uma inteligência pessoal, como Jeová, Alá, Baal, Wotan, Zeus ou Krishna. Se, com “Deus”, você se refere ao amor, à natureza, à bondade, ao universo, às leis da física, ao espírito da humanidade ou à constante de Planck, nenhuma das anteriores se aplica. Uma estudante americana perguntou a seu professor se ele tinha uma opinião formada a meu respeito. “É claro”, respondeu o professor. “Ele diz que a ciência positiva é incompatível com a religião, mas fala em tom de êxtase sobre a natureza e o universo. Para mim, isso é — religião!”. Bem, se é isso que você opta por indicar quando fala em religião, ótimo, isso faz de mim um homem religioso. Mas se seu Deus é um ser que projeta universos, escuta orações, faz milagres, lê seus pensamentos, se preocupa com seu bem estar e faz você se reerguer depois de morto, é pouco provável que você se satisfaça. Como disse o respeitado físico americano Steven Weinberg: “Se você quiser dizer que ‘Deus é energia’, então poderá encontrar Deus num pedaço de carvão.” Mas não espere que congregações inteiras lotem sua igreja.

Quando Einstein disse: “Deus teve uma opção ao criar o Universo?”, ele quis dizer: “Poderia o universo ter começado de mais de uma maneira?”. “Deus não joga dados” foi a maneira poética encontrada por Einstein para colocar em dúvida a teoria da indeterminância de Heisenberg. Einstein se irritou, num caso que se tornou célebre, quando os teístas interpretaram erroneamente o que ele dissera, considerando que ele falava de um Deus pessoal. Mas o que ele esperava? A sede de interpretá-lo erroneamente deveria ter sido evidente para ele. Os físicos supostamente religiosos geralmente revelam sê-lo apenas no sentido einsteiniano: são ateus dotados de disposição poética. Eu também o sou. Mas, em vista do anseio muito amplo por esse grande equívoco de interpretação, confundir deliberadamente o panteísmo einsteiniano com religião sobrenatural é um ato de alta traição intelectual.

Aceitando, então, que a hipótese da existência de Deus é uma hipótese científica válida cuja verdade ou falsidade nos é oculta pela ausência de evidências, qual deve ser nossa melhor estimativa da probabilidade de que Deus existe, dadas as evidências hoje disponíveis? Bastante baixa, na minha opinião, e eis o porquê.

Para começar, vários dos argumentos tradicionais em favor da existência de Deus, de são Tomás de Aquino em diante, são fáceis de se demolir. Vários deles, como o argumento da primeira causa, funcionam criando um regresso infinito, para cuja conclusão se convoca Deus. Mas nunca nos é dito por que Deus é magicamente capaz de pôr fim a regressos, sem dar qualquer explicação dele mesmo. É claro que precisamos, sim, de algum tipo de explicação da origem das coisas. Físicos e cosmólogos estão trabalhando duro sobre esse problema. Mas, seja qual for a resposta — uma flutuação quântica aleatória, ou uma singularidade de Hawking/Penrose, ou seja que nome acabarmos por lhe dar —, ela será simples. Coisas complexas e estatisticamente improváveis, por definição, não acontecem, simplesmente — elas exigem uma explicação. Elas são impotentes para encerrar regressos, de uma maneira que coisas simples não são. A primeira causa não pode ter sido uma inteligência — o que dirá uma inteligência que atende a orações e tem prazer em ser adorada. Coisas inteligentes, criativas, complexas e estatisticamente improváveis chegam ao universo com atraso, como produtos da evolução ou de algum outro processo de escalação gradativa a partir de origens simples. Elas chegam ao universo tarde; logo, não podem ser responsáveis por tê-lo projetado.

Outro dos esforços de são Tomás de Aquino, o argumento da gradação, merece ser explicado porque resume a frouxidão característica do raciocínio teológico. Observamos graus de bondade ou temperatura, digamos, e os medimos, disse são Tomás de Aquino, com referência a um máximo:

O máximo em qualquer gênero é a causa de tudo naquele gênero, assim como o fogo, que é o máximo do calor, é a causa de todas as coisas quentes. Logo, deve existir algo que é para todos os seres a causa de seu ser, bondade e todas as outras perfeições; e a isso chamamos Deus.

Isso é um argumento? Poderíamos igualmente bem dizer que as pessoas variam com relação a seu grau de mau cheiro, mas que só podemos fazer a avaliação com referência a um máximo perfeito de mau cheiro concebível. Logo, deve existir um malcheiroso preeminentemente ímpar, ao qual chamaremos Deus. Ou então substitua qualquer dimensão de comparação que você quiser e dela derive uma conclusão igualmente insensata. Isso é teologia.

O único dos argumentos tradicionais em favor da existência de Deus que é largamente usado hoje é o argumento teleológico, às vezes chamado de argumento a partir do desígnio, embora — como seu nome impõe a pergunta sobre sua validez —, seria melhor que fosse chamado de argumento em favor do desígnio. É o conhecido argumento do “relojoeiro”, que com certeza é um dos maus argumentos mais superficialmente plausível já descoberto — e é redescoberto por praticamente todo o mundo, até que se lhes é ensinada sua falácia lógica e a alternativa brilhante proposta por Darwin.

No mundo familiar dos artefatos humanos, as coisas complicadas que aparentam ter sido projetadas foram projetadas. Para os observadores ingênuos, parece ser decorrência lógica disso que coisas igualmente complicadas no mundo natural que aparentam ter sido projetadas — coisas como olhos e corações — também o tenham sido. Não é apenas um argumento por analogia. Existe aqui, também, uma aparência de raciocínio estatístico — falaz, mas que carrega uma ilusão de plausibilidade. Se você misturasse aleatoriamente os fragmentos de um olho, uma perna ou um coração um milhão de vezes, teria sorte em obter até mesmo uma combinação que fosse capaz de enxergar, andar ou bombear. Isso demonstra que objetos como esses não poderiam ter sido montados por acaso. E, é claro, nenhum cientista de bom senso jamais disse que o foram. Lamentavelmente, a educação científica da maioria dos estudantes britânicos e americanos omite qualquer menção a Darwin, e, portanto, a única alternativa ao acaso que a maioria das pessoas consegue imaginar é o desígnio.

Mesmo antes da época de Darwin, a ilogicidade era evidente: como poderia ter sido boa ideia, para explicar a existência de coisas improváveis, postular um criador que teria sido ainda mais improvável? O argumento inteiro é logicamente inválido, como percebeu David Hume antes de Darwin ter nascido. O que Hume não conhecia era a alternativamente supremamente elegante tanto ao acaso quanto ao desígnio que Darwin nos apresentaria. A seleção natural é tão espantosamente poderosa e conveniente que não apenas explica a vida toda, como eleva nosso grau de consciência e reforça nossa confiança na capacidade futura da ciência de explicar todas as outras coisas.

A seleção natural não é simplesmente uma alternativa ao acaso. É a única alternativa final jamais sugerida. O desígnio é apenas no curto prazo uma explicação funcional para a complexidade organizada. Não é uma explicação final, porque os próprios responsáveis pelo desígnio precisam ser explicados. Se, como certa vez especularam como brincadeira Francis Crick e Leslie Orgel, a vida neste planeta tivesse sido semeada intencionalmente por uma carga de bactérias enviada no cone de um foguete, ainda precisaríamos de uma explicação para os extraterrestres inteligentes que teriam enviado o foguete. Em última análise, eles devem ter evoluído gradativamente a partir de origens mais simples. Apenas a evolução, ou alguma espécie de “guindaste” gradualista (para empregar o termo apto de Daniel Dennett), é capaz de encerrar o regresso. A seleção natural é um processo antiacaso que vai gradativamente aumentando a complexidade, um passo minúsculo a cada vez. O produto final deste processo de avanço irreversível é um olho, um coração ou um cérebro — um objeto cuja complexidade improvável é totalmente incompreensível, enquanto você não enxergar a rampa gradativa que conduz a ele.

Quer esteja certa ou não minha conjetura de que a evolução constitui a única explicação da vida no universo, não há dúvida de que ela é a explicação da vida neste planeta. A evolução é um fato, e é um dos fatos mais incontestes conhecidos pela ciência. Mas ela precisou começar de alguma maneira. A seleção natural não pode operar seus milagres enquanto não existirem determinadas condições mínimas, das quais a mais importante é um sistema preciso de criação de réplicas — o DNA ou algo que funcione como o DNA.

A origem da vida neste planeta — o que significa a origem da primeira molécula a se autorreplicar — é difícil de estudar porque (provavelmente) aconteceu apenas uma vez, 4 bilhões de anos atrás e sob condições muito diferentes daquelas com as quais estamos familiarizados. É possível que nunca cheguemos a saber como aconteceu. Diferentemente dos eventos evolutivos comuns que a seguiram, ela deve ter sido um evento genuinamente muito improvável, no sentido de imprevisível: improvável demais, talvez, para que químicos possam reproduzi-lo em laboratório ou sequer imaginar uma teoria plausível que explique o que aconteceu. Essa conclusão bizarramente paradoxal — que um relato químico da origem da vida, para ser plausível, precisa ser implausível — seria lógica se fosse fato que a vida é extremamente rara no universo. E, de fato, nunca encontramos qualquer indício de vida extraterrestre, nem mesmo por rádio — circunstância essa que motivou a indagação de Enrico Fermi: “Onde está todo o mundo?”

Suponhamos que a origem da vida no planeta tenha ocorrido graças a um golpe de sorte tremendamente improvável, tão improvável que acontece apenas em um em 1 bilhão de planetas. A Fundação Nacional de Ciências reagiria com gargalhadas a qualquer químico que propusesse uma pesquisa que tivesse apenas uma chance em cem de dar certo — o que dirá uma em 1 bilhão. No entanto, em vista do fato de que existem pelo menos 1 bilhão de bilhões de planetas no universo, mesmo uma probabilidade tão absurdamente pequena quanto essa resultará em vida em 1 bilhão de planetas. E — é aqui que entra o célebre princípio antrópico —, a Terra precisa ser um deles, porque nós estamos aqui.

Se você partisse numa nave espacial para encontrar o único planeta na galáxia que tem vida, as chances de que não o encontrasse seriam tão grandes que, na prática, a tarefa seria indistinguível do impossível. Mas, se ainda estivesse vivo (como você manifestamente estaria, se estivesse prestes a entrar numa nave espacial), não precisaria se dar ao trabalho de sair à procura do único planeta, porque, por definição, já se encontraria nele. O princípio antrópico realmente é bastante elegante. Por falar nisso, não penso realmente que a origem da vida tenha sido tão improvável assim. Acho que a galáxia é pontilhada por muitas ilhas de vida, mesmo que essas ilhas se encontrem demasiado distantes uma das outras para que qualquer uma delas tenha a esperança de encontrar-se com qualquer outra. O que quero demonstrar é que, dado o número de planetas do universo, a origem da vida poderia, teoricamente, ser um golpe de sorte tão grande quanto o de um jogador de golfe vendado acertar um buraco com uma tacada só. A beleza do princípio antrópico consiste no fato de que, mesmo diante de chances tão estarrecedoramente grandes contra ela, ela ainda nos fornece uma explicação perfeitamente satisfatória da presença da vida em nosso planeta.

O princípio antrópico geralmente é aplicado não a planetas, mas a universos. Alguns físicos sugeriram que as leis e constantes da física são demasiado boas —como se o universo fosse pré-disposto a favorecer nossa eventual evolução. É como se houvesse, digamos, meia dúzia de mostradores representando as principais constantes da física. Cada um deles poderia ser sintonizado com qualquer um de uma grande gama de valores. Quase todas as manipulações dos mostradores renderiam um universo no qual a vida seria impossível. Alguns universos desapareceriam no primeiro pico-segundo (picosecond). Outros não conteriam elementos mais pesados que o hidrogênio e o hélio. Em outros, ainda, a matéria jamais se condensaria para formar estrelas (e são necessárias estrelas para formar os elementos químicos, logo, a vida). Podemos estimar a probabilidade muito pequena de que todos os seis mostradores por acaso estarem corretamente sintonizados e, então, concluir que algum manipulador divino dos mostradores deve ter entrado em ação. Mas, como já vimos, essa explicação não é inteligente porque deixa sem resposta a maior pergunta de todas. O próprio manipulador divino dos mostradores teria que ter sido no mínimo tão improvável quanto sua manipulação dos mostradores.

Mais uma vez o princípio antrópico oferece sua solução devastadoramente satisfatória. Os físicos já têm razões para suspeitar que nosso universo — tudo o que podemos enxergar — é apenas um universo entre possivelmente bilhões. Alguns teóricos postulam um multiverso de espuma no qual o universo que conhecemos seria apenas uma bolha. Cada bolha teria suas leis e constantes próprias. Nossas leis conhecidas da física seriam regulamentos internos regionais. De todos os universos existentes na espuma, apenas uma minoria possuiria as condições necessárias para gerar vida. E, com a visão retrospectiva antrópica, é óbvio que nós precisamos estar sentados em um membro dessa minoria, porque, afinal, estamos aqui, não estamos? Como disseram os físicos, não é por acaso que enxergamos estrelas em nosso céu, pois um universo sem estrelas seria destituído dos elementos químicos necessários para a vida. É possível que existam universos cujos céus não têm estrelas, mas eles não teriam habitantes que pudessem dar-se conta dessa ausência. Do mesmo modo, não é por acaso que vemos uma rica diversidade de espécies vivas: pois um processo evolutivo que é capaz de render uma espécie capaz de enxergar coisas e refletir sobre elas não pode deixar de gerar muitas outras espécies ao mesmo tempo. Essa espécie reflexiva precisa ser cercada por um ecossistema, assim como precisa ser cercada por estrelas.

O princípio antrópico nos dá direito a postular uma dose maciça de sorte na explicação da existência de vida em nosso planeta. Mas existem limites. Temos direito a um golpe de sorte para a origem da evolução, e talvez a alguns poucos outros eventos únicos, como a origem da célula eucariótica e a origem da consciência. Mas com isso termina nosso direito à sorte em grande escala. Enfaticamente, não podemos evocar grandes golpes de sorte para explicar a ilusão do desígnio que brilha em cada uma do bilhão de espécies de criaturas vivas que já viveram na Terra. A evolução da vida é um processo geral e contínuo que, essencialmente, produz o mesmo resultado em todas as espécies, por mais diferentes sejam os detalhes.

Contrariamente ao que às vezes se alega, a evolução é uma ciência previsora. Se você escolher qualquer espécie ainda não estudada e submetê-la a escrutínio detalhada, qualquer evolucionista irá prever com confiança que se observará que cada indivíduo da espécie fará que tudo que estiver a seu alcance, à maneira particular dessa espécie — vegetal, herbívora, carnívora, nectívora ou seja o que for — para sobreviver e propagar o DNA que reside nela. Não estaremos por aqui por tempo suficiente para testar essa previsão, mas podemos afirmar, com grande confiança, que, se um cometa atingir a Terra e extinguir os mamíferos, uma nova fauna surgirá para tomar seu lugar, assim como os mamíferos tomaram o lugar dos dinossauros há 65 milhões de anos. E a gama de papéis exercidos pelo novo elenco do drama da vida será semelhante em seus traços gerais, mesmo que não em seus detalhes, aos papéis exercidos pelos mamíferos, e pelos dinossauros antes deles, e pelos répteis com semelhanças com mamíferos que existiam antes dos dinossauros. Previsivelmente, as mesmas regras vêm sendo seguidas por milhões de espécies em todo o globo e há centenas de milhões de anos. Esse tipo de observação geral requer um princípio explicativo inteiramente diferente do princípio antrópico, que explica eventos singulares, como a origem da vida ou a origem do universo, pela sorte. Esse princípio inteiramente diferente é a seleção natural.

Explicamos nossa existência por uma combinação do princípio antrópico e do princípio da seleção natural de Darwin. Essa combinação fornece uma explicação completa e profundamente satisfatória de tudo o que vemos e conhecemos. Não apenas a hipótese de deus é desnecessária. Ela é espetacularmente pouco parcimoniosa. Não apenas não precisamos de um Deus que explique o universo e a vida. Deus se destaca no universo como o mais gritante dos supérfluos que destoam de tudo o que o cerca. É claro que não podemos comprovar que Deus não existe, assim como não podemos comprovar que Thor, fadas, duendes ou o Monstro do Espaguete Voador não existem. Mas, assim como fazemos com essas outras fantasias cuja existência não conseguimos desmentir, podemos afirmar que Deus é muito, muito improvável.


• autor: Richard Dawkins
• tradução: Clara Allain
• fonte: Folha Online
• original: Why there almost certainly is no god

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