Estava eu lendo as notícias do dia entre uma obrigação e outra quando me deparei com uma que de cara me fez ficar feliz da vida. Pena que a sensação de "dèjá vu" logo se apoderou de mim e em seguida, ajeitei a barba e depois de ler com mais atenção, minha felicidade logo acabou.
Quero dizer, não é que eu tenha ficado triste, mas a conhecida sensação que meu mestre ensinou que se chama "ceticismo" apareceu e então me lembrei da frase "use-a com sabedoria, jovem Gafanhoto".
Bricadeiras à parte, digo que ainda me anima qualquer notícia que nos faça ver como nossos companheiros animais são inteligentes e tudo que possa contribuir para que eles ganhem um maior respeito de nossa parte é animadora por si só. Acontece que ainda que eu concorde que os animais devam der tratados com todo o respeito merecido, que esse respeito venha das razões certas e não de enganos, conscientes ou não.
Antes que venha uma multidão querendo me malhar, vou avisando que não acho que o dono dos cachorros da notícia esteja tentando enganar alguém. Pode ser que ele tenha caído no mesmo engano que o treinador de um certo cavalo chamado Hans há cerca de um século. Deste falarei depois; primeiro sobre os cachorros alvo da notícia.
Saiu na matéria que o artista plástico Alexandre de Melo de São Tomé das Letras (MG) diz que ensinou dois cães, o labrador chocolate Escher, de 4 anos, e o labrador branco Jack, de 2, a fazerem cálculos matemáticos. As respostas são dadas pelos canídeos através de batidas com as patas dianteiras.
Melo alega que Escher tinha grande faclidade em aprender os truques que lhe eram ensinados, como sentar e dar a pata. Assim, ele resolveu aumentar o desafio e primeiro fez com que ele desse a pata 10 vezes seguidas e depois, foi introduzindo sinais para que ele começasse a fazer contas e subtrações.
Com o tempo, o artista também diz ter ensinado multiplicação e divisão para Escher. Aí, vem a parte mais curiosa, um outro cachorro chamado Jack, que não pertence ao artista, mas que passa o dia inteiro na companhia de Escher parece ter aprendido a calcular e até superou o companheiro.
Não sei quanto ao leitor, mas aqui meu "sentido ce cético" disparou e me lembrei de uma história parecida envolvendo um cavalo, mas não vou adiantar o assunto. O fato é que a população da cidade está impressionada com a habilidade dos cachorros. Muitos admiram o fato de um resultado tão impressionante ter sido obtido sem qualquer tipo de opressão, mostrando o quanto os cães podem ser espertos.
O artigo termina dizendo que: truque ou realidade, Melo está orgulhoso com o trabalho da dupla canina e espera contribuir em tempos onde maus tratos a animais têm sido frequentes. "Na nossa constituição eles são considerados coisas e não seres, mas ali existe alguém. Isso me faz pensar até onde eles podem chegar, até onde pode ir isso", conclui.
Certamente os cães podem ser muito espertos. Quem tem um em casa sabe a que ponto a inteligência deles pode chegar e falo isso por experiência própria com meu pastor alemão. Acho louvável o trabalho do artista, mas como nem sempre a realidade é como nós desejamos, precisamos deixar algumas coisas muito bem explicadas antes de prosseguirmos. na anállise desta notícia.
Em primeiro lugar, não ponho em dúvida a inteligência do melhor amigo do homem. Só mesmo quem convive com um pode observar como eles são espertos. Esses da reportagem não são exceção, o que vou questionar é se eles realmente fazem contas ou se há algum outro "segredo" por trás disso e estou convencido de que PODE haver.
Em segundo lugar, mesmo que seja comprovado que a habilidade deles não seja matemática, não se trata de algo que desabone a inteligência de ambos. Ao contrário, reafirma que eles são muito mais inteligentes do que se suspeitava anos atrás, mas aqui seria uma inteligência mais social e não matemática. Mas é inteligência e mostra haver aí uma capacidade cognitiva bastante refinada.
Em terceiro lugar, não digo que os cachorros não são capazes de aprender a contar ou fazer contas. Pelos indícios que temos, eles têm noção de número e até é possível que possam fazer cálculos simples instintivamente. O questionamento é quanto ao caso de Jack e Jill Escher se eles realmente estão fazendo contas. tudo ficará mais claro daqui a pouco, prometo.
Por fim - e que isto fique bem claro -, não estou acusando Alexandre de Melo de ser um enganador ou charlatão. Ainda que em momento nenhum foi mencionado que ele cobra dinheiro pelas apresentações. A princípio, creio que ele ainda que esteja sendo honesto, existe a possibilidade de os cães o estarem enganando sem querer.
Agora chegou a hora de depois de tanto suspense apresentar um outro animal calculista que ficou muito famoso na história da ciência e do ceticismo. Não era um cachorro, mas um cavalo, mas isso não o impediu de ter seu nome imortalizado, tanto que o fenômeno que ele ajudou a descobrir ganhou seu nome. Apresentamos o famoso cavalo Hans, também conhecido como Clever Hans, ou Hans Esperto, se preferirem. E de quebra, qu que desconfio que acontece com os cães mineiros, o "Efeito Clever Hans".
Para facilitar um poouco meu trabalho, recorri a uma pesquisa no Dicionário do Cético, cujo artigo está muito bem explicado. Apenas vou editar um pouco, eliminar algumas partes irrelevantes e adicionar comentários, mas o original pode ser acessado no link que está no fim da postagem.
O fenômeno Clever Hans trata-se de uma forma de dar pistas de forma involuntária e inconsciente. O termo se refere a um cavalo (Kluge Hans, tratado na literatura como "Clever Hans") que respondia a perguntas que exigiam cálculos matemáticos dando batidas com os cascos. Se seu mestre perguntasse quanto eram 3 mais 2, o cavalo batia os cascos cinco vezes. O animal parecia estar respondendo à linguagem humana e ser capaz de compreender conceitos matemáticos (Hans também podia dizer as horas e o nome de pessoas, mas vamos restringir a discussão de suas fantásticas capacidades a seus dons matemáticos). Oskar Pfungst acabou descobrindo que o cavalo respondia a pistas físicas sutis (reação ideomotora), ou como define Ray Hyman, "Hans respondia a um simples e involuntário ajuste postural do questionador, que era sua dica para começar a dar batidas, e a um movimento de cabeça inconsciente e quase imperceptível, que era a dica para parar" (Hyman 1989: 425). Assim mesmo, mais de uma dúzia de cientistas observaram Hans e convenceram-se de que não havia nenhuma sinalização ou truque (Randi 1995: 49). Ficaram impressionados por Hans ter se saído quase tão bem sem a presença de Van Osten quanto com ela (Schick e Vaughn 1988: 116). Mas estavam errados.
E vemos que o próprio dono de Hans não percebeu o que estava fazendo, ele não tentou enganar ninguém, mas de certa forma foi enganado pelo cavalo. Há a possibilidade de estar acontecendo isso com os cachorros da reportagem também. Sempre há a possibilidade de uma história se repetir.
O cavalo era apenas um canal através do qual a informação que o questionador introduzia sem querer na situação era retornada a ele. A falácia envolvida foi tratar o cavalo como fonte da mensagem, em vez de como um canal através do qual a própria mensagem do questionador era refletida de volta. (Hyman loc. cit.).
Pfungst notou que, quando a resposta correta não era conhecida de nenhum dos presentes, Clever Hans também não a sabia. E quando não podia ver a pessoa que tinha feito a pergunta, o cavalo não respondia corretamente. Isso levou Pfungst a concluir que o cavalo estava recebendo pistas visuais, ainda que sutis. Descobriu-se que Von Osten e outros estavam isconscientemente dando dicas para Hans "tensionando os músculos até que ele fornecesse" a resposta correta (ibid.). O cavalo realmente era inteligente, não porque entendia a linguagem humana, mas porque podia perceber movimentos musculares muito sutis. O mais importante é que Pfungst descobriu que as pessoas podem inconscientemente transmitir informações a outras através de movimentos sutis, e que alguns animais podem perceber esses movimentos inconscientes. Foi apenas questão de tempo até que os psicólogos começassem a investigar influências não-verbais entre seres humanos.
Ocorre frequentemente que se pense que animais demonstram evidências de capacidades linguísticas que não possuem. E que seres humanos são capazes de obter mensagens psíquicas quando são apenas sensíveis à sinalização inconsciente dos outros.
Assim, podemos concluir que as impressionantes habilidades dos cães podem ser um Fenômeno Clever Hans em ação, o que leva todos a crerem que eles aprenderam a fazer contas, mas existe a possibilidade de que eles estejam apenas lendo pistas sutis que lhes são dadas inconscientemente pelo dono ou por outros que estão presentes. Ainda assim, o fato de os cães perceberem essas sutilezas e aprenderem a corresponder a isso demonstra grande capacidade da parte deles, sem dúvida.
Enquanto essa possibilidade não for descartada, eu poderia recomendar à imprensa que tivesse um pouco de cautela ao anunciar as habilidades dos cães. Mas ainda que se demonstre um fenômeno Clever Hans, ainda fica comprovado o fato de que nossos companheiros caninos são muito mais inteligentes do que se imaginava antes e que seria bom que certos indivíduos repensassem a maneira com que tratam seus animais de estimação. Temos indícios suficientes para saber que eles não são meros objetos, mas seres dotados de uma boa inteligência e eu até arrisco a dizer que possuem autoconsciência.
Fontes:
G1 Notícias
Dicionário do Cético
Fontes:
G1 Notícias
Dicionário do Cético
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